A proposta do neblinaº de novembro/2011 é uma conversa sobre as representações de gênero na arte contemporânea. A escritora e pesquisadora Carolina Pombo coloca o assunto em debate, contando com a participação do público em uma conversa informal e aberta a todos que tenham algum material para compartilhar sobre o tema e suas variantes, assim como com aqueles que se interessam por conhecer melhor esta questão ainda pouco discutida no Brasil.


































Carolina é antes de tudo escritora. Escreve crônicas sobre maternidade, identidade feminina, sustentabilidade e outros assuntos correlatos no blog What Mommy Needs, que faz parte de um site e uma loja virtual, administrados por ela. Mas, escreve também ficção. Já tem alguns livros em desenvolvimento, ainda não publicados, e uma série de contos, armados com ironia e poesia, que falam da vida real. Depois de terminar o mestrado sobre as representações sociais de cidadania no Brasil, na pós-modernidade, resolveu voltar-se, também como pesquisadora, para o universo da Arte e da Literatura. Vem pesquisando, então, as relações de gênero representadas em manifestações artísticas mais recentes.

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Abaixo um dos contos de Carolina Pombo:


Embates

Era uma moralista. Ele tinha lhe dito assim, na cara, seco e frio, como quem dilacera o peito de uma galinha. Finalmente ele falara alguma coisa, e tinha sido assim:

- Já lhe passou pela cabeça que você é uma moralista?

E, diante da radical mudança de semblante, teve que continuar:

- Em relação ao sexo, digo, aos afetos, mas especialmente àqueles em quem você tem algum interesse sexual... entende?

Ela corou, de raiva e vergonha, e só pode responder com um “ã-ha” sem abrir a boca. Olhou para baixo, procurando um lugar seguro, longe da voracidade do analista, buscando um buraco no meio da consciência, no qual pudesse imergir e vomitar o bolo  que aquelas inesperadas palavras tinham formado em seu estômago. “Puta que pariu, que merda é essa?!” – quase podia ouvir seus pensamentos, tamanha intensidade. Mas, instigado pelo mal estar oportuno da cliente, ele assumiu definitivamente a postura de Psicanalista, com P maiúsculo – dono, rei, torre de marfim daquele consultório, que antes jazia intimidado com a vivacidade daquela mulher – e voltou a acertá-la no estômago:

- Você é capaz de procurar o motivo certo para se masturbar! Como você mesma disse, ao desejar se tocar, pensa no quanto fazer isso pode ser bom para o seu casamento, não é mesmo?
- Sim... - Ela respondeu com a voz quase inaudível. – Quanto mais eu conhecer meu corpo, melhor vai ser o sexo com meu marido, né? – Disse, repetindo a fórmula para casamentos sexualmente ativos, tão batida em revistas femininas.

Ela as lia, regularmente, e preenchia assim suas estorinhas com boa dose de auto-reflexão barata. Tinha consciência disso, mas não esperava que ele soubesse – idéia que a deixou ainda mais envergonhada e claramente desconfortável. Quem diria? Aquela imagem de afrodite, que variava de roxo a vermelho durante as sessões, falando quase compulsivamente, em tom alto e forte, como se esperasse ser ouvida inclusive no hall, agora amarelava. Foi perdendo o tom, e palideceu.
Ele sentia um imenso prazer de conquista, de vingança, e sabia bem disso. Foi o momento certo para, finalmente, catarsear sua irritação com a paixão que ela lhe despertara. Ele vinha definhando, morrendo a cada encontro, com medo de falar e interpretar as estórias de flertes com estranhos, conflitos com os colegas de trabalho, e as recorrentes piadas sobre o marido da irmã. Ele alimentava estupidamente uma enorme atração por elas, jogando internamente uma partida de “quem vai ficar com Elisa”, na qual derrubava os concorrentes, e era enfim engolido pelo prêmio. Ela devorava os homens, ou gostava de deixá-los salivando. Ele estava prestes a reforçar essa monstruosidade, quando heroicamente a desarmou.
Ela foi capaz de perceber um risinho sínico, mas não pôde acreditar. Seu analista não seria sádico a ponto de maltratar suas pacientes assim! Ela preferiu a opção de ter sido tudo um erro. Provavelmente ele estava mal-humorado e não soube separar as coisas, “vai se desculpar já”, pensou. Ou então, iria manter a palavra para não ficar feio, “mas vai anotar naquele caderninho estúpido que a sessão de hoje foi perdida, por causa de sua própria ignorância. Pelo menos, um sinal de vida nessa cara de paisagem”, continuou ruminando sem nada falar.
- O que você está pensando agora? Atirou.
- Ãh? - Pega desprevenida, retrucou: - Nada!
- O que você acha do que eu disse?
- Moralismo, né? Hum... Olhou pra janela, para o relógio na parede, e viu que ainda faltavam longos 30 minutos para acabar a sessão. Sempre ficava insatisfeita com o tempo, e costumava passar uns dez minutos, mas hoje, podia acabar alí mesmo. Ela voltaria, inexplicavelmente. Sentia vontade de voltar, talvez para mostrar que ela não era moralista, até porque era capaz de falar de seus desejos sexuais explicitamente para o “cara de paisagem”, sem qualquer pudor. E foi isso que usou como defesa:
- Acho que se eu fosse moralista não contaria pra você minhas sessões solitárias de prazer, certo? Mandou em tom irônico, mas já receosa da réplica.
- Pois me parece que você é uma mulher bem-resolvida sexualmente, que não tem medo dos desejos alheios, e é exatamente com esta imagem que você pretende esconder os seus maiores conflitos. Na verdade, Elisa, você é uma mulher tradicional, para usar um termo que você mesma trouxe quando criticou sua irmã e o boçal do marido dela.
Como num lampejo de genialidade, ele lembrou das palavras recorrentes, aquelas que poderiam ser as palavras-chave do texto infindável da análise de Elisa. E, percebeu que o caderninho, abandonado sobre a mesinha, se tornara inútil, diante das revelações. Sentiu-se mais sábio do que nunca, confortavelmente. Não precisava de nada que o lembrasse das sensações que vivia em cada encontro com aquela mulher ameaçadora, desde o primeiro olhar. Agora, tais lembranças não o perturbavam, mas alimentavam seu ego. Ele se ajeitou na poltrona, repousou a perna direita sobre a esquerda, encostando-se melhor e revirando o pescoço. Relaxava como um guerreiro vitorioso que baixa a guarda antes que seu oponente caia porque sabe que ele invariavelmente cairá.
- Não entendi...
- Hum... Quantas vezes você me fez alguma pergunta aqui? Quantas vezes admitiu que não estava entendendo nada? Essa deve ser a primeira, né?
Ela assentiu com a cabeça. Os olhos assustados e a testa franzida, com um ponto de interrogação quase estampado sobre os olhos, fizeram-no renovar o fôlego e manter o ataque:
- Você quer parecer forte, porque na verdade está cheia de medo do mundo terrivelmente perigoso que enxerga. Neste mundo, não há lugar para os fracos, e você, então, precisa se mostrar forte, mais inteligente que os homens de seu trabalho, mais descolada do que as amigas da academia, mais atraente do que sua irmã. Mas você se agarra desesperadamente a um marido que nunca está aqui nas nossas sessões porque na vida real ele apaga toda a sua vivacidade, não é mesmo?
- Não, realmente, eu não costumo falar de meu marido... porque eu não tenho problemas com ele. Ele é maravilhoso! Apesar de todas as propostas indecentes que recebo no trabalho, no prédio e até na academia, como te contei outro dia, sou fiel à ele! Eu só dou pra ele! – Falou agora com mais ênfase, como se tentasse convencer a si mesma também.
- Você é mais fiel ao pau dele do que à sua própria...
- Pára! – Ela já estava chorando.
Ele lhe ofereceu uma caixa de lenços de papel, voltou a recostar-se e degustou a cena.